Lacieverso #22 || Hortênsias 9 Joia Profana + 10 Meu Amor, Tão Doce

Boas vindas, convidado!

É o começo do final — a partir de agora, os capítulos são mais curtos, então estarei condensando-os em alguns emails (para postar tudo antes do fim do ano!). Espero que gostem!

Hortênsias

CAPÍTULO NOVE

JOIA PROFANA

Dezembro veio, e com ele, a primeira neve do inverno. Chegamos na minha casa, e entramos no apartamento meio molhados, como acontece com toda neve. Todas as canções de amor de Natal falavam de como era linda a neve, mas ninguém mencionava a parte inconveniente dela, a parte da vida real.

Bem, essa parte não era tão glamurosa.

Tomamos banho, não juntos, dessa vez. E uma vez que saí do boxe, cheio de pensamentos conflitantes, foi um ar fresco ver você com apenas meu moletom a cobrir o corpo em cima da minha cama, as pernas esguias expondo a pele alva e tentadora.

— Venha logo para a cama — você urgiu, e eu fui.

Coloquei uma calça de moletom e fiquei sem camisa, e aconcheguei meu corpo com o seu, debaixo dos edredons fofos. Dava para ver a neve caindo por cima da estufa, e por um momento, me preocupei com as hortênsias, mas quando você beijou meu braço, tinha coisas muito mais importantes para se lidar agora do que a primeira neve do ano.

O ano em si poderia esperar.

Beijei seu pescoço, sentindo toda a sua pele se arrepiar em resposta. Era muito bom o sexo, claro, mas ficar com você daquela forma também era muito delicioso, especialmente depois de termos estabelecidos nossas posições naquele relacionamento. Ainda não sabia se podia te chamar de namorado (mas, convenhamos, se éramos exclusivos, o que mais nós éramos?) e pela primeira vez, me permiti sonhar um pouco. Até porque, eu queria saber mais sobre você. Queria entendê-lo.

E ser parte de você, da sua vida.

— Então... — comecei, enquanto você literalmente ronronava contra mim.

— Hmm?

— Quais os planos para o feriado?

Você se contorceu contra mim, e soltou um suspiro pesado. Aparentemente, eu havia tocado em um tema sensível. Mesmo assim, você continuou abraçado comigo, mas com suas costas para mim, eu não conseguia ver sua expressão.

— É complicado — você resmungou.

— Tem algum tempo até o Natal — brinquei.

Você suspirou, e ficamos em silêncio por um longo período, em que achei que você tinha caído no sono, mas sua voz voltou a falar, alta e clara.

— Eu não me dou bem com o meu pai.

Eu beijei seu ombro.

— Somos dois, então.

— Quid pro quo, então.

Soltei uma risada, porque era típico seu. Você se afugentava das respostas, mas as queria do mesmo jeito. Era muito bom ver você também interessado em minha vida, nas minhas coisas. Me enchia de esperanças e estrelas.

— Devo começar, então?

— Por favor, sr. Alex.

Encostei a testa em seu ombro, e deixei as memórias virem: elas não eram fáceis, nem um pouco. E no fundo, eu sabia que esse momento chegaria, mas era exatamente assim que eu o imaginava, em um local confortável e protegido, em que poderíamos despejar nossos sentimentos um no outro. Não era um filme, era normal

você fantasia demais, alex

e era isso que importava.

— Acho que mencionei que minha mãe é falecida.

— Sim. Que ela morreu em um incidente e que foi assim que você e Dave se conheceram.

— Exato, mas eu conheci Dave um pouco antes. Eu era babá dele, antes de ele ser “Dave”. Mas no fundo, eu já sabia, porque ele não se encaixava em nada. Eu era um moleque na época, devia ter uns doze anos, mas andava com uma galera bem mais velha e que não tinha uma ideia de futuro muito melhor do que ser trombadinha ou entrar para uma gangue. Minha velha ficava muito preocupada com isso.

— Ah, por isso a tatuagem.

— Foi uma estupidez. — Eu toquei meu rosto, uma constante memória dos erros que cometi contra as pessoas que eu amava.

Você se virou para mim, e com os dedos esguios, traçou os contornos em minha bochecha com delicadeza e amor. Eu fechei os olhos e me permiti me deliciar com aquele contato.

— Sua mãe...?

— Ela queria que eu frequentasse mais a igreja, especialmente porque eu estava levando o filho da amiga dela para o mau caminho. E lá vamos, as duas famílias para as missas dominicais. Eram um tormento, ter que me arrumar direitinho. Eu ficava olhando para o teto, desejando que um meteoro caísse e acabasse com o meu tormento. Bem, aconteceu algo parecido. O teto, de fato, caiu.

— Sério?

— Alegaram depois que foi danos estruturais. Bem, não foi um meteoro. Mas eu, Dave e mais algumas crianças ficamos debaixo de uma das abobadas por doze horas até nos tirarmos dos escombros, e a maior parte dos adultos faleceu naquele dia, incluindo minha mãe e o pai de Dave. Meu pai saiu com uma perna ruim, e dona Kate, viúva.

Pela sua expressão, era óbvio que era uma surpresa. Era o que geralmente as pessoas demonstravam quando você contava que aos catorze anos você foi soterrado vivo, mas...

— Você não tem problema com isso?

— Francamente, eu mal me lembro de tudo. Foi tudo tão rápido...

não foi rápido

doze horas debaixo da terra

o gotejar da água

a mão de Dave segurando a minha

por favor, não solte a minha mão

não vou soltar

nunca mais solte a minha mão

— E foi ruim, não me entenda mal. Mas eu não consigo me lembrar de tudo com todos os detalhes. Foi há tanto tempo, também.

— Por causa do trauma que você não consegue lembrar?

Dei de ombros.

— E importa, se eu consigo lembrar ou não? O que importa é que estou vivo, aqui, com você.

Mas meus pensamentos foram até aquele homem, naquela casa ainda, com o cair de poeira em retratos e roupas ainda em guarda-roupas, uma casa imutável, parada no tempo.

— Meu pai não reagiu da mesma maneira. Ele nunca conseguiu superar a morte da minha mãe, que era a melhor amiga dele, além de companheira. Eles tinham uma relação muito forte, invejável. Mas quando ela se foi, ele se perdeu. Ele ainda trabalha, faz uns bicos, mas ele passa a maior parte do tempo reclamando de um tempo que já se foi, e que não vai voltar mais. E ele não consegue ver que seu filho está bem na sua frente, disposto a ter uma relação, mas ele é muito teimoso.

Sua risada era preciosa.

— Por que está rindo?

— Seu pai deve ser igualzinho a você.

— Ai não, espero que não. Ele está ficando calvo, eu ainda quero manter esta juba aqui... — E passei as mãos pelos meus cabelos ruivos, e você fez o mesmo, seu olhar brilhando contra os lençóis escuros. Era como se a própria lua cheia tivesse uma irmã e estivesse deitada em um manto de estrelas e escuridão. — E você?

— Eu?

— Sua família. Quid pro quo, para citar Hannibal Lecter.

Foram muitas reações em seu rosto, e vi quanto era complicado para você. Mas respirando fundo, você abriu a boca, e a voz de anjos começou a falar dos problemas no paraíso.

— Meus pais se divorciaram quando eu e Chase éramos mais novos. Tínhamos uns onze anos, acho. Meu pai ainda mora na mesma casa onde nasci, e minha mãe arranjou uma moradia na mesma rua, rua das Margaridas. E embora minha mãe tivesse a guarda, eu escolhi ficar com o meu pai. Porque... eu fiquei do lado dele na briga. Minha mãe era paranoica, ficava mexendo no celular do meu pai, brigando com ele todas as vezes que ele recebia a mensagem de alguma amiga, quebrando coisas. Não foi uma época fácil para nós.

“Chase ficou com minha mãe desde o princípio, e achou um absurdo eu ter tomado o partido de meu pai. Brigamos também. Ainda nos víamos na escola, mas pouco, tínhamos poucas matérias juntos. E aos poucos, fui esquecendo que sequer tinha um irmão gêmeo. Fui descobrindo um novo mundo, amigos, pessoas. Meu pai conheceu outra mulher, e se casou em pouco tempo. Ela tinha uma filha: Hayley.

“Hayley é mais nova que nós, mas é a cara do meu pai. Tem os mesmos olhos azuis da família. Depois de um tempo, ficou inegável a semelhança e eu perguntei. Meu pai simplesmente respondeu:

Achei que você já soubesse.

“E foi isso. Achei que você já soubesse. E nesse espiralar, eu fui definhando aos poucos. As brigas foram aumentando. Eu percebi o erro que cometi, e tentei falar com minha mãe, mas ela ainda estava muito magoada. E Chase... eu tirei nós dois do armário quando meu pai me pegou em uma situação indelicada com um rapaz no meu quarto da casa dele. E devo dizer que meu pai é extremamente homofóbico. Não foi uma experiência boa. Ele me expulsou de casa, e por isso voltei a morar com a minha mãe. Mas ela ainda se ressente de mim, meu irmão está magoado, e eu não tenho uma casa, um lar de verdade.”

— Então o resumo é isso. Não tenho um lugar para o qual voltar, e frequentemente ando por aí.

— Foi aí que o hábito de dormir com pessoas aleatórias apareceu?

Você deu de ombros. Justo.

— Ao menos era um teto sobre minha cabeça.

— E você vai passar o Natal com eles?

— Acho que vou passar com a minha mãe. Eu sei que ela costuma a dar uma festa do trabalho todos os anos, mas não sei o que ela fará este ano. Francamente, ainda não sei o que farei. Talvez apenas perambule por aí, olhando a neve.

O que era uma visão muito triste de se ter. Você merecia mais. Muito mais do que tudo aquilo que aquelas pessoas poderiam te oferecer.

Uma ideia me acometeu.

Uma ideia profana.

— Fique aqui.

— Você vai me abandonar também? — você fez um muxoxo.

— Acalme-se, padawan. Tudo a seu tempo.

E vasculhando minhas gavetas, achei a joia perdida.

— Abra as mãos.

— O quê?

— Abra.

Sem entender, você fez uma concha com as mãos, e eu entreguei-a: profana, maldita, amaldiçoada, e completamente metálica. Uma diminuta chave.

o sinal

— O que é isso?

— Achei que fosse mais esperto que isso, Jesse.

Você arregalou os olhos.

— Você está me dando uma chave para o seu apartamento? Alex...

— Olha, eu sei que a gente se conhece tem pouco tempo, mas... Eu não quero que seja porque seja romântico. Eu quero que você sinta que mesmo que não exista lugar para você retornar, você sempre voltar para cá. Eu estarei esperando, e se eu não estiver aqui, eu virei correndo te encontrar. Isso eu posso prometer, acima de tudo. Eu te amo, Jesse.

Sua boca estava aberta, o que era bem cômico, mas seus olhos se encheram de gratidão e lágrimas, e vi você me puxar para o abraço mais terno que já me envolveu na vida. Eu o acolhi, e juntos, abraçados, demos às boas-vindas ao inverno, à paixão, e depois, ao sono dos justos.

***

Quando acordei, você não estava mais lá, mas tinha um motivo desenhado em um bilhete ao lado do meu celular morto. Eu estava definitivamente precisando de um novo, e quando o colocava para carregar, eu me deliciei passando um café enquanto lia e relia aquele pedacinho de papel.

Jesse: Não vá acordar muito tarde!! Depois nos vemos, tá? Me manda mensagem quando você acordar, seu dorminhoco. Amo você.

E aquilo era o suficiente para alimentar mil Sóis, de tão precioso. Eu queria emoldurar e colocar na parede, apenas para poder olhar aquele pedaço de papel todos os dias.

Quem diria, Alex Morris, completamente de quatro por um macho com metade da altura dele, mas que tinha roubado meu coração de forma completa e irredutível.

Era isso o que chamavam de amor?

Se fosse, eu nunca tinha sentido com qualquer outra pessoa. Eu estava nas nuvens, e não queria deixar de ter aquela sensação nunca. Queria sentir mais da sua pele, sentir como você se tocava contra mim, e cada memória era um raio de sol a afugentar o frio do inverno.

Meu celular finalmente ligou, e eu encarei a realidade com sofreguidão. Enquanto recebia as atualizações do dia, terminei meu café, deixando a xícara em cima do balcão. Foi bom que eu o fiz, porque a mensagem que apareceu em negrito, além de todas as chamadas perdidas foi o suficiente para me fazer ter um ataque de pânico.

Samuel: Alex, o Dave foi para a sua casa? Ele não apareceu para nosso encontro...

E antes que eu pudesse dizer algo, eu sabia que alguma merda tinha acontecido.

***

Cheguei em casa depois do trabalho, e a casa estava em silêncio mais uma vez. Nama não deveria estar em casa, e sinceramente, era melhor assim. Poder evitar o inevitável mais uma vez era uma possibilidade muito boa. E aos poucos, era assim que nós vivíamos, empurrando os problemas montanha acima, esperando que nunca viria o ponto em que teríamos que lidar com eles ladeira abaixo.

Quando andei pelas escadas, consegui ouvir o barulho distinto de videogames sendo jogados, e eu sabia que Chase estava em casa: ele sempre parecia estar em casa nos momentos errado e em que eu queria paz.

Mas talvez...

Eu quisesse falar com ele, dessa vez.

Aproximei-me de sua porta, e dei duas batidinhas. Esperei ele responder, mas não veio nenhuma resposta, então comecei a ir em direção ao meu quarto quando a porta se abriu de repente.

— Que foi, mãe... Ah, Jesse! Que susto! Achei que era a mamãe! — Ele sorriu ao me ver. — Está voltando da casa do Alex?

— Do trabalho — resmunguei. Mas então...

Por que não dar um voto de confiança?

Por que não tentar mais uma vez?

 — E eu dormi na casa dele, sim.

O sorriso dele aumentou, se fosse possível.

— As coisas estão ficando sérias, né?

Eu senti meu rosto corar, e nem consegui elaborar uma resposta direito, porque estava completamente envergonhado. Apenas assenti, o que pareceu apenas encorajar o engodo do meu irmão ainda mais.

— Entendo, entendo. Você gosta dele, né?

— ... Muito.

— Quê? Mesmo?! — E Chase me segurou pelos ombros. — Isso é um milagre! Você se apaixonar por alguém!

beijos trocados debaixo do edredom

promessas

— É, acho que sim. — Dei de ombros.

— Isso é fantástico! Vamos sair em um encontro duplo, eu e Mitchell, você e Alex!

— Não é para tanto, Chase... — mas fiquei me perguntando se não era justo o tipo de breguice que faria Alex superfeliz, então fiquei inclinado a aceitar. Meu celular começou a vibrar no bolso, e eu sorri ao ver quem era.

— Ah, é ele? Atende, atende! Vamos chamá-lo!

— Chase... Oi, Alex, como você está? Dormiu bem?

— Jesse... O Dave sumiu. Eu não sei onde ele está. Ele não está em lugar nenhum.

E eu olhei para o meu irmão, sem saber o que fazer, o celular e os planos para o encontro completamente esquecidos.

CAPÍTULO DEZ

MEU AMOR, TÃO DOCE

INTERLÚDIO

Alex estava em frangalhos quando chegamos à casa de Dave.

Eu nunca tinha o visto tão abalado assim. Estava sentado na varanda da casa, com o rosto entre as pernas, sem prestar atenção ao seu redor. Dona Kate estava no telefone, nervosa, aparentemente gritando com a polícia para reportar um boletim de ocorrência de pessoa desaparecida, enquanto Samuel parecia o meme do John Travolta, com suas roupas formais e mala de notebook em mãos.

— Íamos nos encontrar para editar nossos livros — ele explicou, quando chegamos. Ele parecia o menos agitado de todos, mas isso era dizer muito, porque ele também parecia nervoso. Toda a hora passava a mão nos cabelos, tirando-os do lugar. — Ele não apareceu e nem atendia às minhas ligações. Eu não sei o que aconteceu, ele confirmou ontem que vinha.

— Eu não sabia — Alex murmurou. — Eu não sabia que ele ia sair... Ele também não foi na terapia, ontem. E disse para Kate que iria dormir na minha casa...

Dave não ia para lugar algum sem Alex saber...

Eu me aproximei de Alex, e o abracei. Ele se afundou contra mim, e eu conseguia tocar em seu desespero de tão palpável. Suas mãos se fincaram em meus ombros e achei que ele fosse chorar, mas apenas me abraçou, e ficamos ali por alguns longos minutos, enquanto tentávamos elaborar um plano de ação.

Dona Kate voltou para a varanda.

— Eles não podem emitir o boletim sem quarenta e oito horas de desaparecimento, mas... — Ela mordeu o cabo do telefone, nervosa. — Sabemos que não temos quarenta e oito horas, meninos. Oh céus, meu menino, onde você foi?

E ela começou a chorar, as mãos cobrindo o rosto em desespero.

Alex se levantou e a abraçou.

— Eu vou achá-lo, Kate.

E começou a ir em direção à rua.

— Onde você pensa que vai?

— Vou procurá-lo por aí. Ele pode estar perdido, desmaiado em algum lugar...

— E você vai com o celular nesse estado? — Eu apontei, e ele mostrou o celular descarregado. — Não, eu vou com você.

— Jesse... — Chase suspirou. — Vamos procurar por ele, então. Nós quatro. E nos reunimos aqui daqui a uma hora. Ele não pode ter ido muito longe, sem dinheiro e sem meios de transporte. Ele deve estar aqui por perto.

Kate acenou enquanto nos via partir, e sentou-se na varanda, esperando, enquanto íamos em busca de Dave.

***

Não sei por quanto tempo eu corri, mas o tempo todo, eu gritei pelo nome de Dave, as pessoas olhando para mim como se eu fosse louco. Eu parava as mais incautas para perguntar se viram um rapaz gordo de cabelo lilás, mas minha aparência era tão absurda que afugentava os transeuntes, e eu sabia que era fútil.

Foi mais de uma hora que corri, e sabia que me atrasaria para voltar. Mas algo me fez correr mais, e para longe. Foi o mar me chamando, e quando vi, estava no porto, olhando os grandes cruzeiros passarem, e os casais tomando o chá da tarde nos bistrôs. E perto do caís...

Um jovem, de cabelos lilás, arfando e com as lágrimas em formato de estrelas cadentes.

Eu não sabia como tinha sido eu que tinha o achado, mas eu sabia que tinha que ter sido eu. De todas as pessoas, era eu quem tinha que ter encontrado Dave naquele porto, assim como Alex me encontrou naquela ponte.

— Dave! — Corri até ele, e o amparei. Ele estava obviamente desidratado, e estava chorando muito, além de arfar. Parecia estar tendo um ataque de pânico. — Droga.

— J-Jess... Jesse.... eu encontrei com ele. Eu encontrei... com ele. E ele...

— Não fale agora. — Eu o abracei, enquanto com a outra mão, tentava mandar uma mensagem para o meu irmão, dizendo nossa localização.

— Ele é uma pessoa horrível...

— Quem, Dave? A pessoa que te levou?

— Ele é horrível...

E murmurando as mesmas coisas, foi assim que fomos achados.

Alex olhou para nós e eu nunca o vi tão derrotado. Quando Dave viu Alex, ele se jogou em seus braços, e os dois ficaram assim por vários minutos, apenas ouvindo a respiração pesada de Dave que continuava a chorar e balbuciar várias incoerências, enquanto Alex o agarrava, murmurando vários pedidos para que Dave não fosse embora ainda.

Era impossível penetrar na relação deles.

E era, mesmo.

***

— Dave dormiu?

Alex estava na cama, com o meu telefone sendo usado para uma chamada de vídeo, enquanto ele falava com Dave e o acalmava. Dona Kate o fez ficar em casa, e Alex, eu e Chase voltamos para o apartamento para comer algo. Chase se ofereceu para ir comprar comida em um fast food próximo, e eu tinha acabado de sair do banho quando olhei para meu

namorado?

caso ficar de namoro com outra pessoa, apesar de eu saber que não era bem isso do que a situação se tratava. Mesmo assim, os ciúmes surgiam.

eles têm uma relação impenetrável.

não tem lugar para você.

— Ele tomou remédios — Alex explicou. — Para ajudar a dormir.

— Imagino que Dona Kate vá tomar também. Ela estava derrotada hoje.

— Todo mundo precisa, de vez em quando.

Eu dei de ombros.

Alex deixou o celular cair na cama, terminando a ligação de vídeo, mas não se moveu da cama. Eu me sentei ao seu lado, e puxei o celular para longe.

— O que está pensando?

— Minha cabeça é um lugar horrível agora, você não quer estar nele — não havia um pingo de comédia em sua voz.

— Entretenha-me. Um beijo por pensamento.

— Acho que meus pensamentos não valem seus beijos, nem um pouco de longe...

— Vamos. Fale o que está sentindo.

Alex suspirou.

— É que... por um momento, tudo me pareceu tão... perfeito, sabe?

— Perfeito?

— Eu e você... Dave e Samuel... e Dave indo tão bem. Melhorando no tratamento. E de repente dá um ataque desses.  Tem horas que eu não sei se aguento muito mais disso, sabe?

— Às vezes você sente que Dave é um fardo?

E aquela era sua confissão secreta.

Dizer as palavras foi o suficiente para tornar real os sentimentos que habitavam nele, cristalizá-los em forma física e pristina, e expô-los ao mundo. Sim, era verdade.

Era verdade.

E doía pensar aquilo.

As lágrimas começaram a surgir no rosto de Alex, e eu sabia que tinha pegado em um ponto muito pesado, e simplesmente o abracei, o enlacei, o cativei, o aprisionei dentro de mim com o que havia de forças restantes em mim e o beijei. Primeiro, para secar suas lágrimas, depois com amor, e uma terceira vez, com fome de seu ser. Ele correspondeu, tão sedento de mim quanto eu dele, e não esperou nem eu retirar minha calça de moletom, apenas encaixou-se contra mim, colocando-me em seu colo, e de repente, em nossa sofreguidão, éramos um pela primeira vez. Vistos de corpo e alma, nossos íntimos nus e expostos para a visão do outro. E enquanto ele derramava lágrimas, eu as secava, porque ele fazia o mesmo comigo. E nós nos amamos em um ritmo lento, em um desespero afã, e meus pulmões se tornaram a galáxia, cheio de estrelas e mordidas. E no fundo, não importava.

Porque tínhamos nós dois.

***

— Chase está vindo.

— Demorou para vir. — Alex tomou uma ducha rápida, depois que eu me limpei. Ele estava secando os cabelos e voltando para a cama enquanto eu checava o celular.

— Teve um atraso na cozinha. E ele ficou com preguiça de ir em outro restaurante.

— Ele também esteve correndo, né. Coitado, deve estar morto.

— Ofereça para que ele tome banho aqui também.

— Hmm, gêmeos...

Eu joguei um travesseiro na cara dele.

— Nem pense nisso.

— Já é tarde, pensamento formado. Aliás, Jesse...

— Sim?

— Eu te amo.

A declaração me deixou sem chão de novo, mas eu devia me acostumar com esses arroubos repentinos por parte de Alex. Ele parecia ser um homem muito romântico, mesmo. Alex se aproximou, e pegou em minhas mãos.

— Eu quero gritar para o mundo que você é meu, mas...

Ah.

Sempre tinha um “mas”.

— Não queria falar ainda para o Dave. Ele está fragilizado. Eu quero ter uma conversa direito com ele, descobrir o que aconteceu para ele fugir, e então contar para ele de nós. Não é como se ele não desconfiasse, mas... Não sei o que mais pode fazê-lo surtar.

E não queríamos outro surto, não era mesmo?

Pobre garoto doido que não sabe lidar com as coisas.

Eu apenas assenti. O que eu poderia fazer? Alex me abraçou, e eu sabia que estava entregando meu coração em suas palmas para ele fazer deste o que quisesse. Eu só não esperava me arrepender...

 INTERLÚDIO

— Este foi o meu erro, então.

Você encarou suas unhas, na escuridão da galáxia. Sem sons, sem distinção, apenas desdenho. Enfadonho sequer cogitar quais seriam meus erros, mas o desespero agitava a minha garganta em pequenas ondas, a arranhando, e eu estava no meu limite.

Você não se importava.

— Não existem culpados — você falou, mas havia, e deveria haver. Em um mundo perfeito, a Terra giraria em torno de nós dois, mas naquele momento, eu e você estávamos em crise, a temperatura subindo, e você simplesmente quebrou.

Sua visão, cruel como uma promessa apenas me olhou com o infinito e eu vi o abismo, minhas lágrimas começando a descer.

— Desculpe... — comecei a murmurar

desculpe desculpe desculpe desculpe, ecoou

— Não o desculpo — você se aproximou de mim, e eu caí para trás na cama. Seu rosto a centímetros de mim, e se vivo, sentiria sua respiração quente. Ao invés disso, senti o hálito gelado da morte, e de minha própria culpa. — É isso o que você quer ouvir, Alex?

Escondi meu rosto com as mãos, a vergonha me subindo o olhar.

— Desculpe...

Você se exasperou, e voltou para seu lugar, ainda olhando suas unhas impecáveis.

— Você só quer lembrar das coisas boas. De todas as partes em que nos amamos, e bláblá. Para expiar a sua culpa, você tem que lembrar do fim. — E suspirando, — da parte em que você é culpado.

E de sua boca aberta começaram a sair um tornado de palavras, afiadas o suficiente para cortar minha pele, mas o dano que elas causavam mais eram em minha mente culposa, e eu vi, e eu lembrei.

As memórias são traiçoeiras, não são? Fico ansiosa para ouvir seus comentários, seja aqui no beehiiv quando no meu curiouscat, se preferirem anonimidade. Comentários são mais do que bem vindos! Alimente esta autora com biscoitos! Alternadamente, sempre estou online no Kaleidocosmik. Venham fazer parte dele!

Até semana que vem,

Lacie

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